segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Crônica urbana: Macabéio

Ele era um gay feio, do tipo que é melhor fingir que não vê. Morava ali na comercial da trezentos e onze, num daqueles apartamentinhos de um quarto e sala com varanda colada na do vizinho. Falo assim porque sou politicamente correto e não sei dizer coisas como bicha afetada e veado uó. Ele era feio, do tipo que não se repara a menos que um amigo incauto do mesmo grupo resolva namorá-lo, ao que logo se atribui baixa auto-estima e carência afetiva. Parecia-me sempre aquela estatueta da Deusa, baixinha, toda furada, com o corpo caindo sobre si mesmo, peitos sobre uma barriga redonda por sobre as perninhas rechonchudas. Ele era mais ou menos do mesmo jeito, só que tinha pêlos, as pernas eram mais finas e usava umas bermudas desbotadas curtinhas para ficar na varanda sem camisa. De modo que tinha também um tom de pele ao qual não se vê com bons olhos em gente desse perfil; era um bronze avermelhado, mistura de índio com negro, que logo se fazia notar nos pêlos do peito e no cabelo que não era exatamente ruim, mas era crespo. Era uma figura medíocre e eu não gostava dele porque toda vez me fazia gracejos embaraçosos e de baixo nível quando me via passar.

Pensei sempre que devia ser algo como vendedor em loja de importados; com aquela pele azeda, sempre suada, e uma cara que eu nunca teria coragem de beijar de tão oleosa. Mas não era, era contador. Passava o dia num escritório apertado, com um andar discreto e falando baixo, coisa que eu nunca desconfiaria, visto que não me parecia um homem elegante. Era muito efeminado e de um jeito ruim, do tipo que não cai bem ao porte, fazia pose e vestia roupas de atacado, naqueles tons de verde e vermelho e com aqueles tecidos de que fazem camisa de time de futebol. As falsificadas.

E, quando chegava em casa, eu esperava que passasse as tardes ouvindo música ruim e vendo novela, mas assistia os jornais e gostava dos documentários do mundo animal. E tinha um amor. Ele o visitava umas quatro vezes na semana e dormia por lá, e ia embora na manhã seguinte porque tinha trabalho e morava com a avó. Faziam amor de noite e de tardinha – já tinham trepado um bocado e aprenderam que na cama não é lugar de serem comedidos ou fingirem. Às vezes invertiam, mas geralmente era certo quem dava e quem era penetrado. Trocavam juras de amor no colchão e falavam coisas bonitas. Bonitas no meu entender também. E depois voltavam a suas vidinhas que me faziam pensar em formigas, porque nunca vou olhar com ardor para o sangue que não corre azul.

E foi assim até ontem quando ele foi encontrado lá na setecentos e seis, com formigas na boca e hematomas na cara oleosa do sangue, não mais de suor. Entrou em coma depois do espancamento, disseram. E ainda vivia só que morreu no caminho para o hospital e a ambulância fez volta para o necrotério. E a mãe teve que pagar três passagens de ônibus. Foi currado também, o legista notou. Quem me contou foi o parceiro, depois de pegar as coisas no apartamento hoje cedo, viu-me na padaria – essas coisas não são para jornais. Nos jornais, a discriminação é coisa que a gente vê nos outros e que se discute nas aulas o motivo da TV tentar esconder, mas que agora já está mudando, porque os gays são capa de revista e queridinhos nas novelas das oito. Onde são bem-sucedidos. Casados. Dão-se bem com a família e os vizinhos. Não se beijam nem trepam antes do almoço e nunca, nunca são feios. Gay feio não existe, é lenda urbana. Esse aí, aliás, eu que inventei.





"[...] de herói porque somos covardes, o de santo porque somos maus. E o de assassino porque sempre existe alguém que gostaríamos de matar[...]"
Jean Paul Sartre