segunda-feira, 4 de abril de 2011

No divã

Sabe, fazer análise é como puxar o fio. Você tem um fio solto na sua roupa e você poderia cortá-lo. Sua avó te ensinou a cortá-lo, qualquer pessoa sabe que cortar é o que precisa ser feito porque senão as consequências podem ser desastrosas. Você pode acabar com um buraco imenso no meio da sua camisa favorita ou sem uma manga. A maioria das pessoas tem um pavor inconsciente de fios soltos e com razão. Há pessoas inclusive que andam com tesourinhas na bolsa para lidar com eles de forma rápida, asséptica e indolor. Mas a verdade é que todos nós temos um desejo secreto, assustador, de puxar os fios. De sair puxando e ver cada laço, cada nó se desfazendo; de esquecer por um momento o quanto gostamos daquela camisa, do quanto ela nos fazia parecer belos e atraentes e seguros de nós mesmos. E quando nos distraímos e nos deixamos levar por essa vontade, subitamente acordamos no ponto de perceber que talvez seja tarde demais. Nunca poderemos usar essa roupa de novo.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Porta afora

Há um mundo lá fora. Não é o melhor mundo. Não é o mundo que nós gostariamos de ver, nem é tão mágico, nem é tão sujo. É basicamente um mundo para se dar adjetivos, não virá adjetivado e as pedras no chão doem nos pés. Mas é um mundo real. E mesmo que o mundo real não ensine nada nem possua trilha sonora, é refrescante. Porque nossas fantasias, por mais belas que sejam, criam mofo com o tempo.

domingo, 29 de junho de 2008

É verdade que às vezes tento me contentar com a confusão entre raciocinar e intuir. Convencido de ser essa a minha jornada, caminhar no confuso e encontrar as verdades úteis no meio dele. Sempre mudando, sempre reciclando.
eu espero verdades reveladoras até das folhas caindo.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O desespero ou você?

Você tem o cheiro de alguma coisa picante, como canela, só que mais velha e salgada, um cheiro antigo, que envelhece meio rançoso. E esse é o seu cheiro, eu sei. Se fizessem uma essência de você, ela teria esse cheiro. Combina perfeitamente com todo o resto, as camadas de perfume e óleo, os cheiros de castanhas e amêndoas doces, são todos cheiros da terra, sementes e grãos oleosos que falam de você exatamente o que você quer que os outros saibam: que você é uma proposta, uma promessa, uma possibilidade de qualquer coisa maravilhosa sem hora para acabar e de inícios súbitos, a surpresa simples no fim do dia, a conversa perfeita e a sensação de estar inteiro no mundo, compreendido, acolhido pela profundidade dos seus nutrientes, dos seus olhos que abraçam. É assim que você seduz, e isso é você também. Mas não é tudo. Nunca é. Há algo salgado, picante e antigo em você. Como uma dor envergonhada que virou segredo, como o embaraço de uma criança humilhada na escola, rejeitada. Além do desespero. Sim, há uma pequena dose, quase imperceptível nos seus dias bons, mas está ali, e quem se aproxima acaba vendo. O desespero gritando entre dentes: Não me diga não.
Mas se dissolve na boca e acaba.

O menino que rompeu com os adultos

Ficou com aquilo de ser quando crescer na cabeça. Foi para a frente da casa como quem sai de si um pouquinho, mas fica na porta, à espera, e se sentou no meio fio, olhando a poeira voadora da rua. Numa meninice muito séria e compenetrada. Era-se sempre uma coisa quando se crescia. Era-se médico, professor, tio, pai, namorado e era-se também entendedor das coisas todas. Mas e se nunca fosse? Cresceria? Mas e se nas provas de para-ser-grande não passasse? Que acontecia aos que nunca conquistavam o entendimento das coisas? Sentiu uma desilusão muito grande com os adultos, naquela tarde à porta da frente, porque deduziu nunca poder provar caso lhe estivessem mentindo. Se toda aquela espera fosse uma pregação de peça, feito a de perguntar a alguém como fazer um bobo esperar por um dia e então dizer “te conto amanhã”. E talvez nenhum adulto realmente fosse: Qualquer coisa. Só faz-de-conta que fosse. Ao crescer só se ganhava o direito de tapear os pequenos para lhes obrigar coisas.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Uma arte

Elizabeth Bishop

Não é difícil de aprender a arte de perder
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que sua perda não traz desastre.

Perca algo todos os dias. Aceite o susto
de perder chaves, de perder tempo.
Não é difícil de aprender a arte de perder.

Depois pratique a arte de perder mais rápido mil outras coisas:
lugares, nomes, onde planejou suas férias.
Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe.
A última, ou a penúltima, de minhas casas queridas.
Não é difícil aprender a arte de perder.

Perdi duas cidades, entes queridos.
Pior, perdi alguns reinos, dois rios, um continente.
Perdê-los trouxe saudade, mas não desastre.

- Até perder você (a voz que ri, os gestos que amo).
Não posso mentir: não é difícil.
Não é difícil aprender a arte de perder
por mais que a perda - anote isto! - pareça desastre.