sábado, 20 de outubro de 2007

O que é, o que é

Cultura.

Cul-tu-ra.

Cuultuuuurá!

Que droga é essa?

Tem mais de um ano que eu descobri que esse é o nome do bicho que me coça. O comichão que dá toda vez seguido de uma pergunta do tipo: “Por que mulher pode e homem não? ” ou “Por que os prédios são para cima e não para baixo?” ou “O que essa gente faz quando fica triste?”. Há mais de um ano eu peguei emprestado – e nunca devolvi, mas vamos nos ater ao que importa – dois livros: “Cultura, um conceito antropológico” de um tio* chamado Roque de Barros Laraia e “Antropologia Cultural” de um tal** Franz Boas. Decidido que estava a pegar a antropologia pelo chifre, surpreendi quando descobri que o negócio era bom. Era antropologia o nome que deram para o estudo das coisas esquisitas que eu ficava pensando o dia inteiro.

Aí eu decidi: “Cultura é todo elemento que define a identidade de um povo”. Era tudo aquilo que servia pra eu dizer quem eu era. Só que na lente de aumento. Quer dizer, eu sou o Ronan, isso aí é nome, eu sou brasileiro, é nacionalidade. Mas os brasileiros são como? Quer dizer, eles se governam de que jeito? Se limitam, se organizam, moram, comem, conversam, amam, fazem bebes, se educam, morrem e choram seus mortos e festejam sua vida. Isso aí é cultura. Identidade.

Meu problema é que o Daniel Piza seguido de uma gama de entendidos*** parece achar que cultura que serve pro jornal é só arte. Arte que é coisa do tipo: Teatro, dança, literatura, música, pintura, escultura, cinema e fotografia. Eu não gosto muito de arte. Eu adoro. Só que, no meu entender de não-entendido: arte é manifesto cultural; ela acontece quando o povo (pode entender comunidade, grupo, aglomeração, quadrilha) se sente seguro o bastante com a própria identidade ou perdido a respeito dela, ou perdido por causa dela e aí gera um pobre coitado que vai servir de vetor. Essa criatura – a gente chama de artista – é um serzinho assim, cheio de sensibilidade, que pode se perder fácil fácil por causa disso, e tem a missão (isso ele sente na pele) de mostrar para todo mundo o sentimento que cada atitude causa em uma pessoa ou em várias. Atitude essa que pode ser da comunidade, do grupo, da aglomeração, da quadrilha, enfim, do povo. Em relação ao próprio povo. Tá complicado?

Olha só: Um cara negro é linchado na rua. O artista retrata o linchamento. Ele pode olhar pro cara negro, ou pros linchadores, ou pra rua. No retrato, ele busca uma forma de tocar alguém pra isso. Colocar as pessoas no lugar do cara negro, dos linchadores, da rua. É para sentir alguma coisa. Qualquer coisa. Seja lá o que vier, intenção é fazer vir. Por quê? Ora porque isso é importante, se você não sentir nada, como vai saber que a mão no fogo tá queimando? Sem avisos do seu corpo, você se ferra. Os sentimentos são isso: um sistema nervoso que serve para avisar o que estamos fazendo. Primeiro a gente se conscientiza deles, depois toma uma atitude. De modo que a função social do artista é extremamente importante.

Só que cultura não se resume nessa arte. Essa é um aspecto dela, e não existe sem ela. Mas há outras formas de se fazer arte. Nesse sentido: de tocar os outros, e fazer um alguém vivenciar o lugar de outro alguém, ou até reconhecer o próprio lugar. Sabe, “Empatia”.

Olha lá a Casa das Pombas. É arte também. Aqueles garotxs**** que se reúnem para vivenciar um mundo melhor; juntaram-se numa casa abandonada, reformaram o lugar física e emocionalmente - talvez fumando uns baseados, talvez não – e abriram para que grupos políticos se encontrassem, para morar uns com os outros, para ensinar e aprender. Não, não é vadiagem, besta. Junta com um monte de gente e aprende a respeitar os limites dos outros; da geladeira, ao uso do banheiro, para viver em comunidade, não cada um no seu quarto e descobre o que acontece.

Mas ninguém se interessa por isso, o pouco debate que acontece é na esfera do “Propriedade ocupada ainda é privada depois de doze anos sem uso pelo proprietário? Impostos atrasados quitados pelo grupo dão a eles direito de posse? O grupo vai sair ocupando prédios abandonados por aí?” Isso se alguém quer debater.
Dá para entender à ojeriza ao capitalismo que os anarquistas têm. Ninguém se interessou pelo que eles faziam lá dentro, pela outra proposta que eles lançam.

Estão todos afoitos em defender o direito de ter. Não o de usar. Sem querer saber como usar, sem querer reparar (que medo) no como se usa. Sou a favor dos jovens, não dá para negar. Não de formar uma tropa de elite às avessas e sair ocupando tudo por aí (hum, se bem que na argentina isso foi interessante...), mas de pensar (e experimentar!) novas opções de viver, que podem ser mais prazerosas. Acima de tudo a beleza de entender a cultura está na descoberta de que ela é uma invenção. Isso aí. Mentirinha. Do tipo que a gente conta uns para os outros e se colar, colou.

Viu dona Mídia? Mostra o que é diferente também.


Nohtas (como diz o Millôr, hoje eu quero imitar gente importante):


* Tio, forma óbvia de denominar "professor", individuo que pode ou não ter uma lousa, usar giz de cera, publicar um livro, mas primeiramente ensina

* Tal, título popular dado a fíguras de importância para um grupo de pessoas, que as outras supõe ter alguma razão. No caso do Franz, o grupo é de antropólogos, pois, para eles o Boas é "O cara".

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