domingo, 30 de setembro de 2007

Eu sou ribeirinho

Nasci em beira de Rio, numa tarde de sol, depois de doze horas de trabalho de parto. Eu não queria sair. Fui forçado. Carrego uns duros traumas, aliás; mas faço terapia e vou bem, obrigado. Te digo isso tudo na mais humilde intenção de pedir desculpas. Tinha um propósito certo, juro, mas desculpa é um trem engraçado; depois que se descarrila não tem como voltar. Começaria me desculpando por não te atualizar, blasfêmia da minha parte, que sou jornalista formando e já devia saber muito bem do que é sagrado. Depois vi que a entrevista que devia estar aqui não se deu ao trabalho de aparecer. Uma beleza; fiz propaganda dela para tudo que é lado e agora além da cara no chão, fico com a cara sem nota. Aí, quer saber? Vou também me desculpar pelo mau humor, pela falta de tato, pelo desbocamento, o neologismo, a politicagem, a alienação e até pelo Diogo Mainardi – que, hoje em dia, o diabo também deve ser culpa minha. Mas é que eu não entendo de secas. E meus bisavôs índios se esqueceram de contar para essa geração como é a dança da chuva.

Sou nortista, amapaense e ando estressado. Foram 150 reais para ver uma Madeleine Peyroux muito mal produzida no centro de convenções, que cegou o público na iluminação, esqueceu de ligar os equipamentos de som no fundo da platéia (coisa que até divertiu a moça, que aprendeu com o público alguns palavrões em português, e fez proposta de emprego para o rapaz que gritou dizendo não ouvir nada, suponho que se alguém dissesse sempre o que há de errado nos shows durante o mesmo, as críticas seriam melhores ) e no palco ajambrado de qualquer jeito, com uns pilares de metal atrapalhando a visão e sem qualquer cenário. Esse último a gente perdoa. A simplicidade e doçura dela ao cantar dispensam esses acessórios. E não me venham os pseudo-entendidos querer que eu a compare à Billie Holiday. O blog é meu. E se alguém vier com essa história aqui, leva. Estão avisados. Os timbres são muito diferentes, mesmo que eu não consiga verbalizar os porquês.

Billie cantava de um jeito amargurado e sofrido, como tinha sido sua vida. Abandonada pelo pai ao nascer com uma mãe de treze anos de idade. Foi violentada por um vizinho e acabou se prostituindo aos quatorze, antes que um pianista do Harlem a visse cantar. Isso, óbvio, além de todas as coisas que qualquer negra da Filadélfia menos traumatizada tinha que enfrentar. Embora a comparação seja elogiosa, essa realidade não é nem de longe o que está refletido na voz da Peyroux.

Nascida na Geórgia de 1974, Madeleine parece fazer tudo o que toca virar ouro e não ser muito chegada à fama, o que explica o sumiço de seis anos que deu, depois que seu álbum “dreamland” foi lançado em 1996. Os quais viveu como artista de rua em Paris e tocando com outros nomes nos clubes americanos. Em 2004, lançou “Careless Love” e acho que só não desapareceu de novo porque sua gravadora contratou um detetive particular para ficar atrás dela, além de contar a história para a mídia, claro.

Ela me parece acima de tudo uma aventureira. Pouco foi dito sobre sua personalidade além desses causos hilários de artista em fuga, mas as músicas contam o resto. Coloquei-as para escrever. Quando as letras são dela, parecem sempre falar sobre uma mulher que busca a felicidade, por vezes errando no amor, mas sem confundir o mensageiro com a mensagem. Como em “I´m all right”, do álbum “Half the perferct world”, que ela cantou no show dizendo ser “uma música sobre ficar bem por si só” ou algo do gênero. E isso é claro para qualquer um que experimenta a solidão depois de longa estadia mal-acompanhada. Mesmo que esteja em alerta para a tristeza, prestando atenção nas armadilhas que já conhece (“blue alert”) às vezes também canta sobre se arriscar em algo novo. Ou em manter a decisão de buscar coisas boas, mesmo que ainda se pergunte, vez ou outra quando acorda à noite, por que eles não deram certo, por que não tentaram mais uma vez. Ela o guarda na memória com carinho, como fazemos com os amores cujo tempo passou, contudo, cansou-se de morrer e resolveu viver ao invés disso (“Once in a while”).

Há sabedoria na melodia doce de Madeleine Peyroux, sabedoria para todos que se dispuserem a ouvir. Inclusive para mim, que quando a escuto, quando realmente paro para ouvi-la, ela diz que entende o que é desejar ter um rio (“river”) e não ouvir uma palavra sequer da multidão gritando ao seu redor ("Everybody’s talkin’"). Então me diz “baby, say good bye” para lembrar que não é bom se agarrar ao que dói ou apressar o fluxo, afinal, a vida é fluída, e isso tem suas vantagens. Ora, é como conversar.

Melhor agora. Não há mais nada a desculpar, o coração descarregou as culpas.
Jazz ou Blues? Isso é discussão de sábios. Eu fico com a noção de que arte é curativa, seja qual for seu nome. Lembrei que a última música do show dizia “ouvi dizer que vai chover”. E talvez seja isso. Billie doía. Com razão, verdade, mas ela tinha desistido.

Madeleine? Não posso acreditar que desista. Não ouvindo-a cantar com tanta esperança. Fiquem com os termos corretos, que importam? Eu sou ribeirinho.

2 comentários:

gkrieger disse...

Velho mais um texto delicioso. Você tem a capacidade de levar os leitores para dentro do show e ao mesmo tempo passar a sua visão. Um talento raro e importante para quem quer escrever sobre cultura.

gkrieger disse...

Velho mais um texto delicioso. Você tem a capacidade de levar os leitores para dentro do show e ao mesmo tempo passar a sua visão. Um talento raro e importante para quem quer escrever sobre cultura.