Nasci em beira de Rio, numa tarde de sol, depois de doze horas de trabalho de parto. Eu não queria sair. Fui forçado. Carrego uns duros traumas, aliás; mas faço terapia e vou bem, obrigado. Te digo isso tudo na mais humilde intenção de pedir desculpas. Tinha um propósito certo, juro, mas desculpa é um trem engraçado; depois que se descarrila não tem como voltar. Começaria me desculpando por não te atualizar, blasfêmia da minha parte, que sou jornalista formando e já devia saber muito bem do que é sagrado. Depois vi que a entrevista que devia estar aqui não se deu ao trabalho de aparecer. Uma beleza; fiz propaganda dela para tudo que é lado e agora além da cara no chão, fico com a cara sem nota. Aí, quer saber? Vou também me desculpar pelo mau humor, pela falta de tato, pelo desbocamento, o neologismo, a politicagem, a alienação e até pelo Diogo Mainardi – que, hoje em dia, o diabo também deve ser culpa minha. Mas é que eu não entendo de secas. E meus bisavôs índios se esqueceram de contar para essa geração como é a dança da chuva.
Sou nortista, amapaense e ando estressado. Foram 150 reais para ver uma Madeleine Peyroux muito mal produzida no centro de convenções, que cegou o público na iluminação, esqueceu de ligar os equipamentos de som no fundo da platéia (coisa que até divertiu a moça, que aprendeu com o público alguns palavrões em português, e fez proposta de emprego para o rapaz que gritou dizendo não ouvir nada, suponho que se alguém dissesse sempre o que há de errado nos shows durante o mesmo, as críticas seriam melhores ) e no palco ajambrado de qualquer jeito, com uns pilares de metal atrapalhando a visão e sem qualquer cenário. Esse último a gente perdoa. A simplicidade e doçura dela ao cantar dispensam esses acessórios. E não me venham os pseudo-entendidos querer que eu a compare à Billie Holiday. O blog é meu. E se alguém vier com essa história aqui, leva. Estão avisados. Os timbres são muito diferentes, mesmo que eu não consiga verbalizar os porquês.
Billie cantava de um jeito amargurado e sofrido, como tinha sido sua vida. Abandonada pelo pai ao nascer com uma mãe de treze anos de idade. Foi violentada por um vizinho e acabou se prostituindo aos quatorze, antes que um pianista do Harlem a visse cantar. Isso, óbvio, além de todas as coisas que qualquer negra da Filadélfia menos traumatizada tinha que enfrentar. Embora a comparação seja elogiosa, essa realidade não é nem de longe o que está refletido na voz da Peyroux.
Nascida na Geórgia de 1974, Madeleine parece fazer tudo o que toca virar ouro e não ser muito chegada à fama, o que explica o sumiço de seis anos que deu, depois que seu álbum “dreamland” foi lançado em 1996. Os quais viveu como artista de rua em Paris e tocando com outros nomes nos clubes americanos. Em 2004, lançou “Careless Love” e acho que só não desapareceu de novo porque sua gravadora contratou um detetive particular para ficar atrás dela, além de contar a história para a mídia, claro.
Ela me parece acima de tudo uma aventureira. Pouco foi dito sobre sua personalidade além desses causos hilários de artista em fuga, mas as músicas contam o resto. Coloquei-as para escrever. Quando as letras são dela, parecem sempre falar sobre uma mulher que busca a felicidade, por vezes errando no amor, mas sem confundir o mensageiro com a mensagem. Como em “I´m all right”, do álbum “Half the perferct world”, que ela cantou no show dizendo ser “uma música sobre ficar bem por si só” ou algo do gênero. E isso é claro para qualquer um que experimenta a solidão depois de longa estadia mal-acompanhada. Mesmo que esteja em alerta para a tristeza, prestando atenção nas armadilhas que já conhece (“blue alert”) às vezes também canta sobre se arriscar em algo novo. Ou em manter a decisão de buscar coisas boas, mesmo que ainda se pergunte, vez ou outra quando acorda à noite, por que eles não deram certo, por que não tentaram mais uma vez. Ela o guarda na memória com carinho, como fazemos com os amores cujo tempo passou, contudo, cansou-se de morrer e resolveu viver ao invés disso (“Once in a while”).
Há sabedoria na melodia doce de Madeleine Peyroux, sabedoria para todos que se dispuserem a ouvir. Inclusive para mim, que quando a escuto, quando realmente paro para ouvi-la, ela diz que entende o que é desejar ter um rio (“river”) e não ouvir uma palavra sequer da multidão gritando ao seu redor ("Everybody’s talkin’"). Então me diz “baby, say good bye” para lembrar que não é bom se agarrar ao que dói ou apressar o fluxo, afinal, a vida é fluída, e isso tem suas vantagens. Ora, é como conversar.
Melhor agora. Não há mais nada a desculpar, o coração descarregou as culpas.
Jazz ou Blues? Isso é discussão de sábios. Eu fico com a noção de que arte é curativa, seja qual for seu nome. Lembrei que a última música do show dizia “ouvi dizer que vai chover”. E talvez seja isso. Billie doía. Com razão, verdade, mas ela tinha desistido.
Madeleine? Não posso acreditar que desista. Não ouvindo-a cantar com tanta esperança. Fiquem com os termos corretos, que importam? Eu sou ribeirinho.
domingo, 30 de setembro de 2007
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2 comentários:
Velho mais um texto delicioso. Você tem a capacidade de levar os leitores para dentro do show e ao mesmo tempo passar a sua visão. Um talento raro e importante para quem quer escrever sobre cultura.
Velho mais um texto delicioso. Você tem a capacidade de levar os leitores para dentro do show e ao mesmo tempo passar a sua visão. Um talento raro e importante para quem quer escrever sobre cultura.
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